sexta-feira, 13 de julho de 2007

Devagar com o andor da urbanização

     Surpreendentemente, até agora não provocou maior discussão no Brasil o relatório State of World Population 2007 - unleashing the potential of urban growth, divulgado há umas duas semanas pelo Fundo da População da ONU (UNFPA), que aponta a urbanização como caminho para resolver os problemas da pobreza no mundo.
     Depois de criticar os planejadores nos países ditos em desenvolvimento por um suposto viés antiurbano, prevê o relatório que as áreas urbanas no mundo, que em 1950 tinham 29% da população (732 milhões) e este ano chegam a 50% (3,2 bilhões), estarão em 2030 com 59,9% (5 bilhões).
     Embora reconheça que 1 bilhão de pessoas vivem em favelas, 90% das quais nos países ditos em desenvolvimento, acha o UNFPA que a tendência de urbanização "é irreversível e não deve ser combatida".
     Na Ásia, o atual 1,36 bilhão de pessoas chegará a 2,64 bilhões em 2030; na África, elas passarão a 742 milhões; na América Latina e no Caribe, aumentarão de 394 milhões para 609 milhões - e nesse movimento a cada semana cresce em 1 milhão de pessoas a população favelada na Ásia e África (O Globo, 28/6). No Brasil, 84% da população já estaria nas cidades e chegará a 90% em 2030.
     No dia em que essas estatísticas foram divulgadas, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, lembrou que, dos 11 milhões de habitantes da cidade, nada menos que 3,2 milhões vivem em condições inadequadas. Rio e São Paulo têm, cada uma, mais de 1 milhão de pessoas abaixo da linha da pobreza. E essas duas populações, juntas, formariam a terceira maior cidade do País.
     Esses números ajudam a mostrar que, pelo menos no Brasil, a urbanização não está resolvendo os problemas dos pobres. Mas não houve réplica ao UNFPA, ao que parece. Nem mesmo se argumentou que a situação possa ser diferente de região para região, de país para país.
     Ou que há outros fatores a considerar, como os mencionados no também recente relatório Nosso futuro urbano e a saúde do planeta, no qual o WorldWatch Institute lembra que boa parte das "catástrofes naturais" tem origem na "urbanização descontrolada", que acrescenta 60 milhões de pessoas a cada ano nas cidades.
     Nelas, 1 bilhão de pessoas vivem sem saneamento básico e em precárias condições de moradia; oito das dez cidades mais populosas estão sobre falhas sísmicas ou perto delas; seis em dez são vulneráveis a ondas gigantescas; e embora as cidades ocupem apenas 0,4% da área do planeta, respondem pela maior parte das emissões de gases poluentes.
     Uma voz isolada a se levantar contra as premissas do relatório do UNFPA foi a do professor Ignacy Sachs, da Escola de Altos Estudos em Ciência Social de Paris, onde é co-diretor do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo.
     Começou o professor Sachs - um dos estudiosos que mais têm mostrado a possibilidade de desenvolvimento rural, geração de trabalho e renda sem necessidade de urbanização - lembrando que a Europa, ao industrializar-se, "exportou" dezenas de milhões de pessoas para as Américas; "trucidou dezenas de milhões de camponeses" em duas guerras; além disso, "os refugiados do campo que chegavam às cidades encontravam emprego nas indústrias intensivas em mão-de-obra, ao passo que nos encontramos atualmente numa fase de desindustrialização (do ponto de vista do emprego)".
     Quem se der ao trabalho de olhar os números no Brasil verá que, de fato, há muito o que discutir na tese do UNFPA.
     Estamos há muito tempo com taxa de desemprego pouco acima de 10% nas seis principais regiões metropolitanas do País - o que significa, só aí, 3,23 milhões de desempregados; 4 milhões de pessoas que trabalham nessas seis regiões recebem menos de um salário mínimo por mês; apenas em São Paulo há mais de 1,1 milhão de desempregados; em 20 anos, o número de trabalhadores "informais" passou de 701 mil para 956 mil, em 2005 (mais 36,2%); e, segundo o professor Márcio Pochmann, três quartos dos trabalhadores recebem há 20 anos até dois salários mínimos. Boa parte dessas pessoas migrou da zonas rurais para as urbanas.
     Nesse processo, dizem outros estudos, a renda continuou a concentrar-se no País, que está em 10º lugar entre os países com maior desigualdade social, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. E aqui, em 40 anos, a população urbana cresceu 108 milhões de pessoas, passou de 44,67% do total para cerca de 80% - sem que milhões de migrantes alcançassem muito progresso em suas condições de vida.
     Conviria, portanto, ir devagar com o andor da tese das vantagens universais da urbanização. Até porque, entre nós, como mostra o professor Sachs, se a chamada modernização tecnológica pós-1990 eliminou 8,98 milhões de empregos na agropecuária, também fez desaparecer 3,63 milhões na indústria manufatureira, 907 mil na administração pública e 757 mil na construção civil - ou seja, eliminou 12,3 milhões de postos de trabalho.
     Como foram criados 11,96 milhões na economia doméstica e 3,58 milhões nos setores voltados para a exportação, resta nessa década um saldo de 1,6 milhão de postos de trabalho - quando a cada ano tentam entrar no mercado de 1,5 milhão a 1,8 milhão de pessoas (Inclusão social pelo trabalho decente: oportunidades, obstáculos, políticas públicas, 2004).
     Já passou, portanto, da hora de dar atenção à possibilidade de modernização do setor rural, com a industrialização de matérias-primas, turismo rural e ambiental, criação de espaços para idosos, integração da agricultura familiar no processo de geração de energia por biomassas (em cooperativas que se encarreguem do esmagamento, e não apenas do fornecimento da matéria-prima às megausinas).
     Mas, em lugar disso e de tecnificar o ensino rural, continuamos forçando a urbanização de crianças e adolescentes, com o fechamento das escolas rurais.
 
Autor: Washington Novaes  - O Estado de São Paulo - Jornal da Ciência
Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=48729


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