segunda-feira, 23 de julho de 2007

Em "God Is Not Great", ateísmo de ensaísta vira nova religião

"Esse é o problema do panfleto de Hitchens: preocupado em derrubar a religião, o seu ateísmo converte-se numa nova forma de religião. Dogmática, intolerante. E, como em todos os extremismos, capaz de conceder a Deus uma importância de vida ou morte. Sobretudo a um Deus em que não se acredita. É a suprema ironia"
 
     O que seria de nós sem Deus? A pergunta é antiga, a urgência é recente: no dia 11 de setembro de 2001, as Torres Gêmeas desabavam perante os olhos incrédulos do mundo.
 
Queda do World Trade Center em 11 de setembro de 2001
 
     E entre os responsáveis pelo massacre, Deus também estava na lista. Se a religião não existisse, o fanatismo jamais teria voado até Nova York. A religião destrói tudo. A história da religião é a história da desgraça humana.
Christopher Hitchens acredita que sim, em "God Is Not Great". Esclarecimento: gosto de Hitchens e há vários anos que acompanho o bicho. Não é fácil: são duas dezenas de livros e incontáveis colunas para incontáveis publicações de elite (da "New Statesman" à "Vanity Fair", da "Slate" ao "TLS").
     Depois de Mencken e Gore Vidal, Hitchens tem a raríssima qualidade de conciliar profundidade teórica com um destrutivo e impressivo sentido de humor. Irresistível, não?
     Sem dúvida. Irresistível mas falível, sobretudo quando a profundidade não acompanha o humor. Acontece com "God Is Not Great", que provoca riso e frustração em qualquer leitor informado.
     O riso está na iconoclastia de Hitchens (Maomé era epilético? Jesus morreu pelos pecados dos homens mas ressuscitou ao terceiro dia?), uma iconoclastia que procura mostrar duas coisas: primeiro, que a existência de Deus é uma impossibilidade; e, segundo, que as religiões organizadas são uma malignidade.
     A frustração está na natureza pouco convincente dos argumentos.
Para Hitchens, a existência de Deus é uma impossibilidade pela razão bem simples de que foram os homens a criar o divino, e não o contrário.
     Basta olhar em volta: como conciliar a idéia de um criador perfeito com o estado imperfeito do mundo?
     Na verdade, um mundo imperfeito não é incompatível com um criador perfeito se a liberdade humana é, simultaneamente, uma dádiva e um princípio de indeterminação. Se Hitchens tivesse lido santo Agostinho, saberia disso.
     E sobre um Deus criado pela imaginação humana, a tese, que é uma repetição do trio maravilha (Feuerbach, Marx, Freud), não passa de uma profissão de fé, impossível de prova racional.
     Não é preciso ser crente para subscrever o truísmo: é impossível provar a existência, ou a inexistência, de Deus. Verdade que o objetivo de Hitchens não é apenas esse.
     A existência de Deus é um pormenor quando existem homens que matam em Seu nome. Matam em Belfast. Em Beirut. Em Belgrado. Em Belém. Em Bagdá. E apenas para ficarmos pela letra "B", como diz Hitchens com típico humor.
 
Guerra em Beirute
 
     Infelizmente, e uma vez mais, o humor não basta. Não basta porque não é possível condenar toda a religião organizada tendo em conta as suas expressões mais extremas.
     Porque tudo pode ser perigoso quando levado ao extremo: a fé; a raça; a nação; o amor; o futebol; a estupidez. Além disso, os problemas que Hitchens traz na sua lista "B" não são apenas explicáveis pela religião.
     Só um ingênuo acredita, por exemplo, que o problema israelo-palestino é uma contenta religiosa entre extremistas. A história, a política e as ideologias que sacudiram o Oriente Médio (desde, pelo menos, a queda do Império Otomano) tiveram uma palavra maior.
     Soluções? Para começar, Hitchens não aceita a objeção esperada de que os regimes que aboliram a religião acabaram por descer a níveis impensáveis de desumanidade.
     Desde logo porque, para o autor, esses regimes não aboliram a religião; apenas a transmutaram numa ideologia servida por capacidade tecnológica letal.
     Ainda que isso fosse verdade (não é), esse seria um argumento a favor da manutenção de uma religião tradicional (como Burke, no século 18, ou Tocqueville, no século 19, ou Aron, já no século 20, sublinharam).
     A religião tradicional é conhecida. A transmutação gera o desconhecido.
     Para terminar, Hitchens lança um convite para um novo "iluminismo", capaz de dispensar a religião e alimentar a alma humana com arte e literatura.
     É uma boa proposta, sem dúvida, mas talvez fosse interessante saber que tipo de arte e literatura Hitchens aconselha aos novos iluminados.
     Razão simples: a história da arte no Ocidente é indissociável da herança judaico-cristã que a contaminou. Eu, pessoalmente, só vejo um caminho: lançar na fogueira todas as obras que transportem resquícios religiosos.
     Porque esse é o problema do panfleto de Hitchens: preocupado em derrubar a religião, o seu ateísmo converte-se numa nova forma de religião. Dogmática, intolerante.
     E, como em todos os extremismos, capaz de conceder a Deus uma importância de vida ou morte. Sobretudo a um Deus em que não se acredita. É a suprema ironia.

Autor: João Pereira Coutinho Folha de SP - Jornal da Ciência

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