sexta-feira, 22 de junho de 2007

A transposição da maldição?

     O Governo, através do Ministério da Integração Nacional, declarou que "vai sair do campo da retórica" e já vai proceder a licitação das obras, orçadas nesta etapa, em R$ 100 milhões em vista da transposição do rio São Francisco. Derrubadas as liminares na Justiça, dissuadido o bispo que fez greve de fome, Dom Luiz Flávio Cappio, e com o discutível aval do Instituto Brasileiro de Agricultura e Meio Ambiente (IBAMA), o Governo pretende realizar agora a transposição. O argumento de base é emocional: "Não se pode negar uma caneca de água a 12 milhões de vítimas da seca".
     É exatamente no afã de dar água ao triplo de vítimas da seca que se deve questionar o projeto. Baseio meus dados num artigo publicado no dia 23 de fevereiro em O Estado de São Paulo do respeitável jornalista Washington Novaes "Um novo desfile e a mesma fantasia" e em outras fontes.
     O apoio principal do projeto foi dado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde o governo federal, sozinho, tem a maioria dos votos. Ao contrário, grandes especialistas na área como os professores Aziz Ab'Saber e Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo (USP), Abner Curado, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, mostraram que o problema no Semi-Árido é mais de gestão do que de escassez.
     A Agência Nacional de Aguas (ANA) mostrou que é possível abastecer os municípios sem precisar da transposição do rio. O IBAMA, que deu o aval, forneceu, sem querer, argumentos contra o projeto. Reconhece que 70% da água seriam para irrigação e 26% para o abastecimento de cidades; que a maior parte da água transposta iria para açudes onde se perde até 75% por evaporação; que 20% dos solos que se pretendia irrigar "têm limitações para uso agrícola"e "62% dos solos precisam de controle, por causa da forte tendência à erosão".
     O Tribunal de Contas da União (TCU) diz que o projeto não beneficiará o número de pessoas pretendido. Efetivamente, as comparações entre os projetos do Governo e da ANA, feitas pelo coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Roberto Malvezzi, bom conhecedor da bacia do São Franscisco, mostrou que o do Governo custaria R$ 6,6 bilhões, atenderia apenas a quatro Estados (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará) beneficiando 12 milhões de pessoas de 391 municípios, enquanto o projeto da ANA custaria 3,3 bilhões, atingindo nove estados (Bahia, Sergipe, Piauí, Alagoas, Pernambuco, Rio do Norte, Paraíba, Ceará e Norte de Minas), beneficiando 34 milhões de pessoas de 1356 municípios.
     O próprio Comitê de Gestão da Bacia que conhece bem as questões do rio, foi por 44 votos a 2 contra a transposição; diz ainda que esta atende a menos de 20% do Semi-Árido e que 44% da população do meio rural continuaria sem água. São razões de grande peso.
     Se o Governo quiser efetivamente levar água aos sedentos do Nordeste deve reabrir a discussão pública ou então encampar o projeto da ANA. Caso não ocorrer, podemos contar com nova greve de fome do bispo. Entre o povo que não quer a transposição e as pressões de autoridades civis e eclesiásticas, ele ficará do lado do povo. E irá até o fim. Então a transposição será aquela da maldição, feita à custa da vida de um bispo santo e evangélico. Estará o Governo disposto a carregar esta pecha pelo futuro afora?
 
Autor: Leonardo Boff é escritor, autor dos livros "Mística e Espiritualidade" e "A Águia e a Galinha.: uma metáfora da condição humana".


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