quarta-feira, 16 de maio de 2007

Leviandade sobre o aquecimento global

     Qual seria o custo macroeconômico de cortar pela metade as atuais emissões de gases de efeito estufa, de modo a que a temperatura média do planeta não aumente mais que dois graus centígrados neste século?
     Menos de 3% do PIB mundial de 2030, o equivalente a uma redução das taxas médias anuais de crescimento inferior a 0,12%.
     Essa é uma das principais estimativas oficiais do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC), conforme a contribuição de seu Grupo de Trabalho III para a quarta avaliação, cujo sumário de 35 páginas foi lançado em Bangcoc no dia 4 de maio, e está disponível em
http://www.ipcc.ch/ .
     Baseada nesse texto dirigido a "policymakers", a mídia divulgou  mensagens do tipo:
-  "Mundo tem dinheiro e tecnologia para frear aquecimento";
-  "Combater mudanças climáticas é possível e barato";
-  "Vontade política reduz emissões";
-  "Não precisamos de soluções complexas para controlar clima"; ou;
-  "Salvar o planeta custa 2% do PIB".
     Dessa forma, a opinião pública só poderá mesmo supor que o controle da mudança climática dependa exclusivamente de um "pacto político", já que obstáculos econômicos seriam irrisórios.
     Todavia, pontificar que o preço de salvar o planeta da crise climática se aproxima de 2 ou 3 % do PIB mundial de 2030 é o mesmo que tirar coelho de cartola.
Isso porque qualquer tentativa de análise de custo-benefício de iniciativas mitigadoras do aquecimento global esbarra imediatamente em duplo dilema ético sobre a relação do bem-estar de gerações futuras com o da presente, e das desigualdades desse bem-estar que são independentes do momento de sua existência.
     Pior: esse duplo dilema permanece muito sério, mesmo que se tente diminuir a dificuldade pela suposição de que o bem-estar dependa exclusivamente do nível de consumo.
     Apenas no que se refere ao conflito intergeracional, de longe o mais lembrado na questão da mudança climática, há pelo menos quatro maneiras de tentar superar o problema.
     Duas são bem usuais: a) optar pela neutralidade, supondo que todas as gerações estejam em pé de igualdade; ou b) considerar que cada geração deve deixar para a seguinte pelo menos tanta riqueza (tangível, natural, humana, social, tecnológica etc) quanto a que herdou da anterior.
     As outras duas são bem raras: c) admitir a necessidade de que seja maximizado o bem-estar econômico da geração menos privilegiada; ou d) assumir a linha de máxima prudência, com mínimo consumo e risco zero.
     Para efeito de cálculo, tais saídas corresponderão a diferentes intervalos de "desconto do futuro", essa espécie de reverso da taxa de juros, que serve para estimar o valor presente de alguma coisa que só poderá ocorrer amanhã.
     Os que optam pela saída mais simples, de não atribuir diferenças às gerações, descontam o futuro a taxas próximas de zero.
     E concluem que é preciso fazer um grande sacrifício agora, pois a inação implicará custos sempre crescentes.
     Já William Nordhaus, o mais antigo e mais prestigiado pesquisador da economia do aquecimento global, vem adotando uma taxa de desconto bem alta, de 3%, o que o leva a propor uma "climate-policy ramp", na qual a redução de emissões deveria ser moderada no início do processo e só posteriormente intensificada.
     Para ele, em vez de impor agora sérios limites compulsórios às emissões, seria mais racional investir pesado nos sistemas de educação e de CT&I.
     Uma proposta que foi reforçada pela influência adquirida pelo estatístico dinamarquês Bjorn Lomborg, mesmo que por outras razões.
     Na contramão, por adotarem taxas de desconto próximas de zero, chegaram a conclusões opostas tanto um influente estudo de 1992 realizado por William Cline, quanto o relatório encomendado pelo governo britânico ao Sir Nicholas Stern, que ganhou fama há seis meses.
     Tendência reforçada por Sir Partha Dasgupta, um dos mais conceituados economistas ambientais, muito embora ele tenha criticado o "Stern Review" por não ter levado em conta o problema das presentes desigualdades de bem-estar.
     As outras duas maneiras de enfrentar o dilema ético intergeracional não se prestam a cálculos desse tipo, pois é impossível saber qual será a geração mais deserdada, e inviável pensar, por exemplo, numa adoção radical do "princípio responsabilidade", proposto pelo filósofo alemão Hans Jonas.
     É claro que ambas exigiriam opções extremas, que combinassem forte taxação sobre o carbono a firmes políticas industriais dirigidas à adoção de tecnologias (físicas e sociais) que acelerassem a descarbonização das matrizes energéticas.
     Além disso, tais investimentos não deveriam ser apresentados como sacrifícios que reduziriam taxas de crescimento do PIB global, mas sim como parteiros de novas atividades e novos mercados que certamente dinamizariam as economias nacionais envolvidas.
     Mesmo que tal fenômeno não possa ser captado por essa anacrônica maneira de medir a riqueza que é o PIB, ele decerto seria detectado por novos indicadores, como é o caso da ´poupança verdadeira´ ("genuine savings"), ou ´poupança líquida ajustada´ ("adjusted net savings"), propostas pelo Banco Mundial.
     Não há como decidir qual seria a taxa de desconto mais apropriada. Cada análise a estipula com base em algum pressuposto ético.
     Por isso, é leviandade divulgar um documento que contém estimativas de custo para determinados cenários de redução de emissões sem que se esclareça aos mortais qual foi a taxa escolhida, e por quê.
     É usar o prestígio e a autoridade das Nações Unidas para iludir "policymakers" e confundir a opinião pública em geral. De resto, não há qualquer evidência de que mesmo a mais completa adoção das inovações tecnológicas disponíveis seria suficiente para "frear o aquecimento".
     Ao contrário, até uma possível "revolução do hidrogênio", que permitisse que as economias mais desenvolvidas diminuíssem com rapidez sua dependência das fontes fósseis de energia, não garantiria que o aquecimento global fosse "freado".
     Em suma, é imperdoável que se deixe isso tudo de lado para fazer crer que o problema seja só de "falta de vontade política".
(Valor Econômico, 15/5)
José Eli da Veiga (site: http://www.zeeli.pro.br), professor titular do Depto. de Economia da FEA/USP e coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa). Artigo publicado no "Valor Econômico":

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