terça-feira, 18 de setembro de 2007

A mãe de todas as biopiratarias

Em 1877, 70 mil sementes de seringueira deixaram o Pará
 
     Ao participar na Unicamp de um debate sobre promessas da biotecnologia e da biodiversidade, em 22 de agosto, afirmei que a paranóia da biopirataria no Brasil ainda era assombrada pelo caso de "furto" ou "roubo" da borracha por ingleses no século 19. Mal sabia eu.
    Foi o início de uma esclarecedora troca de e-mails com a botânica Maria do Carmo Estanislau do Amaral, da Unicamp. Ela presenciara o debate e discordou da caracterização de biopirataria para o embarque de 70 mil sementes de Hevea brasiliensis por Henry Alexander Wickham, em 1877, do porto de Santarém (PA).
     O argumento era simples: não havia impedimento legal, na época, para a transferência das sementes. Ora, se não havia sido proibida, sua saída tampouco fora oficialmente autorizada, e implicara prejuízo para o país. O caso ainda se qualificaria como a mãe de todas as biopiratarias, em sentido mais amplo.
     Após o início do cultivo da H. brasiliensis no Sudeste Asiático, nas primeiras décadas do século 20, o preço da borracha no mercado internacional caiu de US$ 6 por quilo para US$ 0,08.
     Os barões da borracha que assistiam a óperas em Manaus foram à bancarrota. A vida dos seringueiros continuou na mesma miséria.
Amaral contra-argumentou que o mero prejuízo não caracteriza biopirataria nem sustenta expectativa de reparação por direitos desrespeitados.
Caso contrário, o Brasil teria de pagar pela cana-de-açúcar da Índia, pela soja da China e pelo café da Etiópia.
     "O Brasil detinha o monopólio da borracha, mas jamais teria como suprir a demanda internacional por borracha na época", ponderou a botânica.
     "A planta não era cultivada racionalmente e as tentativas de cultivo não deram certo. As plantas em monocultura na Amazônia são atacadas por um fungo e não resistem."
     Intrigado com a longevidade do que já se patenteava como mito infundado, voltei às páginas do livro onde duas décadas antes lera a saga de Wickham: "Os Invasores do Amazonas" (1986), de John Ure, um historiador que havia servido como embaixador inglês no Brasil. Sua narrativa corrobora que, de fato, não houve furto. Já a hipótese de contrabando...
     Segundo Ure, Wickham desincumbiu-se com eficiência da tarefa que lhe fora encomendada por Kew Gardens, o jardim botânico da realeza britânica.
Coletou as 70 mil sementes sem chamar muita atenção de ninguém e deu sorte de um vapor rápido da recém-criada linha Liverpool-Manaus -o S.S. Amazonas- ficar sem carga para a viagem de retorno. Fretou a embarcação para levar a carga vegetal direto para a Inglaterra.
     As sementes poderiam deteriorar-se no percurso e não germinar, uma vez em Kew. Wickham não podia correr o risco de levantar suspeitas na alfândega de Belém e ser retido semanas a fio, à espera de autorizações vindas do Rio de Janeiro.
     Wickham lançou mão de uma meia-verdade para obter uma liberação expedita. Ainda de acordo com Ure, disse ao chefe da alfândega que a carga continha uma coleção de "espécimes botânicos particularmente delicados que deveriam ser entregues aos próprios jardins reais de Sua Majestade Britânica em Kew".
     Hoje os maiores produtores de borracha natural são Indonésia e Tailândia. O Brasil importa 160 mil das 250 mil toneladas que consome, ao custo de uns US$ 100 milhões anuais. Em compensação, é um dos maiores exportadores de álcool, açúcar e soja.
     China e Índia têm mais o que fazer e não perdem tempo com os fantasmas do passado.
Autor: Marcelo Leite - Folha de SP - Jornal da Ciência

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